Excelente e lúcido artigo escrito pelo
psiquiatra Celso
Costa Ferreira para Revista Veja –
Edição 1.426 – Ano 29 – Em 10 de janeiro de 1996 – Na coluna Ponto de Vista.
Sou médico psiquiatra em Goiânia. No dia
em que escrevo este texto, mais um
paciente meu, deprimido, parou de tomar a medicação antidepressiva por mim
prescrita. Essa é uma irritante e perigosa rotina na vida de quem lida com
distúrbios mentais neste país. É preciso que essas pessoas saibam que a
depressão é uma doença e que a suspensão do tratamento é um grande risco de
vida para o paciente.
Por que o doente parou com a medicação?
Um “colega” de outra especialidade mandou que ele parasse, pois aquilo era
“bolinha” e só podia fazer-lhe mal. São sempre assim, com pequenas e brilhantes
variações, os sábios conselhos que os usuários de psicotrópicos deste imenso
Brasil: “PARE COM ISSO QUE VAI TE MATAR”; “VOCÊ VAI FICAR LOUCO, TOMANDO ESSA
DROGA”; “VAI FICAR DEPENDENTE”; ” NÃO PRECISA DISSO, É SÓ TER FORÇA DE VONTADE”.
A orientação é tão mais sábia quanto maior é a desorientação do “médico orientador”,
que não conhece psicofarmacologia a fundo, como o psiquiatra.
O trágico desse hábito é que é praticado
por profissionais médicos que deveriam ter sempre como meta a saúde do paciente.
Mas esses médicos não estão sozinhos. Parentes, amigos, vizinhos, curiosos,
balconistas de farmácias, conhecidos e passantes também colaboram para o
sofrimento do deprimido. Depressão é uma doença. Tem boa chance de cura, mas é
uma doença. Não é uma fraqueza moral. Não é um amolecimento do caráter. Não é
um faniquito do qual se possa sair apenas “levantando a cabeça” e esquecendo o
problema.
A faceta mais cruel da situação é que o
deprimido se sente arrasado psicologicamente, com a autoestima baixíssima, com
ideias de incapacidade, fatalidade e morte. No fundo do poço, enfim. Num
sofrimento intenso, com ideias de culpa torturantes, o paciente é incentivado a
retirar a medicação. O que acontece a seguir não é preciso ser nenhum gênio
para perceber. O deprimido acha que, se não consegue dar conta de sair daquela
situação, a culpa é dele, que é um fraco e talvez não mereça nem viver.
A taxa de suicídio entre os deprimidos é
bastante alta para que não se cuide com mais carinho e profissionalismo da
questão. Os transtornos mentais são hoje no mundo todo uma importante questão
de saúde pública. Os governos dos países mais desenvolvidos investem alto em
pesquisas para tentar minorar o problema, que não escolhe raças nem classes
sociais e acomete a todos indistintamente.
É uma doença de alta incidência. Cerca
de uma em cada quatro mulheres apresenta pelo menos um episódio depressivo
importante em toda a sua vida. Esse é um dado mundial. Por que será que uma
questão de tão alta relevância é tratada com tanto desprezo em nosso meio? A
resposta pode ser dada com uma palavra: PRECONCEITO. Um ridículo preconceito
que existe contra os psiquiatras e é irresponsavelmente transferido para os
clientes que se tratam na psiquiatria. Se nós, psiquiatras, lidamos com doentes
mentais, somos loucos também. O fato de lidarmos com doentes mentais não nos
transforma em loucos, assim como os endocrinologistas não viram obesos, os
dermatologistas não vivem a se coçar e os pediatras não usam babador, não comem
papinha nem falam Gugu Dadá. O campo de atuação da psiquiatria hoje em dia é
muito vasto, e cerca de 70% de sua clientela não é formada por doentes mentais
e sim por pessoas com os problemas emocionais e psicológicos mais variados.
Interessantes são os estímulos que os
deprimidos recebem para se livrar da enfermidade. “Sai dessa, vai a uma festa”,
aconselham. “Vai tomar umas com seus amigos e esquece”. Uma conduta
equivalente a dizer a um portador de pneumonia que meta os peitos e pare de
tossir. Ou então sugerir a um infectado de meningite que isso é “coisa da sua
cabeça”.
Depressão é exatamente a impossibilidade
de fazer as coisas que eram feitas normalmente, antes. A impossibilidade de
sentir prazer em estar vivo e de ver as belas cores da vida. Se a pessoa
pudesse fazer as coisas que os bem-intencionados, mas equivocados aconselham,
ela simplesmente não estaria deprimida. Não mandem os deprimidos, e por
extensão os outros pacientes psiquiátricos, parar com a sua medicação. Em vez
de colaborar, podem estar colocando em risco a vida de pessoas que estão
lutando bravamente para voltar a respirar o gostoso cheiro da vida.
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