Cristiane
Segatto (1)
O preconceito contra quem sofre
de transtornos mentais pode virar crime.
Pouco antes de morrer,
em março do ano passado, o humorista Chico Anysio decidiu entrar na luta contra
o preconceito que cerca as doenças mentais. Ele sofria de depressão e, num
sábado à tarde, recebeu em casa o médico Antônio Geraldo da Silva, presidente
da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), para gravar um depoimento.
Durante a conversa, Chico fez um
comentário e uma sugestão:
– Antigamente existiam carros usados.
Agora chamam de “seminovos”. As coisas hoje têm esses nomes. Crie um nome para
o preconceito.
O conselho do comunicador não foi
esquecido. Muitas reuniões depois, a ABP lançou o termo “psicofobia”.
Atualmente ele é adotado para designar atitudes preconceituosas e
discriminatórias contra as deficiências e os transtornos mentais. O uso da
palavra se disseminou. Uma busca rápida no Google aponta 16 mil textos em que
ela é citada.
A psicofobia pode virar crime. O
senador Paulo Davim (PV-RN) propôs uma emenda para incluir esse tipo de
preconceito no projeto de lei de reforma do Código Penal Brasileiro. Vários
senadores, entre eles Aécio Neves (PSDB-MG), apoiam a proposta.
Cerca de 23 milhões de pessoas (12%
da população) necessitam de algum atendimento em saúde mental no Brasil,
segundo uma estimativa conservadora da Organização Mundial da Saúde. Quem sofre
de depressão, transtorno bipolar, esquizofrenia, transtorno Obsessivo-Compulsivo,
entre outras doenças, sabe que o preconceito se manifesta de formas variadas e
perversas.
Com medo de ofender os pacientes,
médicos deixam de encaminhá-los ao psiquiatra. Os pacientes que recebem
encaminhamento desistem de procurar o especialista por medo do diagnóstico e da
discriminação que ele e a família passarão a sofrer.
O estigma destrói a autoestima dos
doentes. Eles deixam de procurar emprego ou de lutar por assistência adequada.
Estima-se que no Brasil 58% dos casos de esquizofrenia não recebem tratamento.
Muita gente acredita que os doentes
mentais são violentos. As notícias sobre crimes ajudam a perpetuar essa crença.
“93% das pessoas com doença mental não são violentas, mas isso nunca é
notícia”, diz o professor Wagner Gattaz, da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo.
Pouco depois do chamado Massacre do
Realengo, quando um ex-aluno entrou numa escola no Rio de Janeiro, matou 12
adolescentes, feriu outros 12 e se matou (leia mais aqui e aqui),
os pacientes de Gattaz passaram a relatar ainda
mais dificuldades.
“Eles diziam que a família estava com
medo, que os amigos passaram a evitá-los e que deixaram de conseguir emprego
porque as pessoas achavam que eles poderiam passar fogo em todo mundo a
qualquer momento”, diz Gattaz.
Não nos damos conta, mas uma das formas mais eficientes de perpetuar o preconceito contra os doentes mentais é aplicar termos da psiquiatria fora do contexto. Quem nunca fez isso?
Não nos damos conta, mas uma das formas mais eficientes de perpetuar o preconceito contra os doentes mentais é aplicar termos da psiquiatria fora do contexto. Quem nunca fez isso?
A imprensa é mestre na arte do uso
metafórico da palavra esquizofrenia. Os portadores dessa doença apresentam
períodos em que têm dificuldade para distinguir o real do imaginado. Podem
ocorrer mudanças na forma de pensar e sentir, com prejuízo das relações
afetivas e do desempenho profissional e social.
Esquizofrenia é isso, mas na
linguagem corrente passou a designar todas as mazelas da política, da economia
e as esquisitices da cultura pop. Faltou palavra? Tascamos um esquizofrênico e
todo mundo entende o que queremos dizer.
Uma amostra dessa prática foi reunida
num interessante estudo sobre o estigma da esquizofrenia na mídia, assinado por Francisco
Bevilacqua Guarniero, Ruth Helena Bellinghini e Wagner Gattaz.
O uso metafórico da palavra
“esquizofrenia” e, principalmente, “esquizofrênico (a)”, nos sentidos de
“absurdo”, “incoerente” e “contraditório” é recorrente.
Nas colunas de política, são
esquizofrênicos: o governo, o Judiciário, as relações Brasil-Estados Unidos, a
Grã-Bretanha e a Comunidade Europeia.
Nas colunas de economia, esquizofrênicas
são a política cambial e a política econômica.
Nas editorias de artes e espetáculos,
quase tudo é classificado como esquizofrênico (a):
• O Festival de Cinema de Gramado
• O show da cantora Cyndi Lauper (que passa de “clássicos a platitudes pop”)
• O ritmo do musical Evita
• Batman
• O ator (que se despe de si mesmo para vestir um personagem, segundo a atriz Bruna Lombardi)
• A infelicidade de hoje (segundo o cineasta e colunista Arnaldo Jabor)
• Rose, a vizinha do personagem Charlie Harper na série Two and a Half Man
• A cantora Madonna (que na adolescência não se decidia entre ser freira e popstar, segundo ela mesma)
• O jornal The New York Times (por cobrar pelo acesso online, mas distribuir conteúdo gratuitamente nas redes sociais)
• O show da cantora Cyndi Lauper (que passa de “clássicos a platitudes pop”)
• O ritmo do musical Evita
• Batman
• O ator (que se despe de si mesmo para vestir um personagem, segundo a atriz Bruna Lombardi)
• A infelicidade de hoje (segundo o cineasta e colunista Arnaldo Jabor)
• Rose, a vizinha do personagem Charlie Harper na série Two and a Half Man
• A cantora Madonna (que na adolescência não se decidia entre ser freira e popstar, segundo ela mesma)
• O jornal The New York Times (por cobrar pelo acesso online, mas distribuir conteúdo gratuitamente nas redes sociais)
Seria divertido se não fosse trágico.
A assistência à saúde mental no Brasil vive uma crise profunda. ÉPOCA contou
isso aqui. Há uma luta
ideológica entre os psiquiatras e parte dos psicólogos. As famílias estão
desesperadas. Falta acesso a medicamentos, ambulatórios e leitos psiquiátricos
para internar os pacientes nos momentos de crise. Apenas 2% dos gastos do SUS
são destinados à saúde mental.
Mudar isso tudo depende de
mobilização, dinheiro e disposição para a luta política. Combater o estigma não
custa nada e depende da vontade individual. Um bom começo é pensar nas palavras
que escolhemos e repetimos. Elas têm peso e consequência.
(1) Repórter especial de ÉPOCA. Escreve sobre medicina há 18 anos. Ganhou
mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo, entre eles o ESSO
de informação científica em 2012. Ouça os comentários dela na Rádio CBN. Todas
as segundas, às 15h30, ao vivo.
E-mail: cristianes@edglobo.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo comentário. Qualquer entre em contato comigo pelo WhastApp (34) 99972 4096